Sobre o que ainda não se sabe

Essa imagem é a inspiração e o texto completo.
Arte de Alex Ross


As pessoas que conhecemos hoje podem não representar nada do que será mais característico nelas no futuro. Os traços mais marcantes da personalidade de alguém, suas características físicas mais singulares, seus chavões inconfundíveis, os feitos que consagraram sua reputação... O que será a  peculiar marca pessoal, a identidade, hoje, pode nem estar em processo de formação. Pessoas não são previsíveis e imutáveis.

Na infância, os amigos do pequeno Albert Einstein não podiam imaginar que aquele garoto teria sua imagem eternamente associada a um bigode. Que examinador da academia de artes poderia supor que estava reprovando o jovem órfão que seria o futuro reverenciado ditador alemão Adolf Hitler? O tímido e imaturo Clark Kent, habitante de uma fazenda de uma pequena cidade do interior, poderia se enxergar como o  poderoso Superman, o herói embaixador da paz intergalática que viria a ser um dia?

A vida é surpreendente ou o destino é implacável?


O Fado da Cuíca - Pt4

Capítulo IV

Bárbara, nunca é tarde...

Acertei o preço das aulas por telefone. No primeiro encontro fui arrebatado por um olhar que tentou buscar na memória algum rosto recente. Reparei que em cima da mesa jazia brilhante e bem conservada uma caneca do Benfica e o pôster dos Campeões da Europa de 62 pendurado na parede.  Fiquei impressionado como naquela casa tudo remetia aos Encarnados, à República e ao Fado.  As guitarras portuguesas, os cravos, as recordações de Eusébio, tudo naquele lugar cheirava a alecrim. Passei algum tempo fingindo ser aluno de História Portuguesa, mas, na verdade eu me apaixonava por um pedacinho daquela terra em um apartamento de 62 m² no centro de Lisboa, e por sua dona, que me encantava e tinha um olhar renitente em cruzar o meu por isso vivia vidrado nos livros e nos textos. Depois de meses de aula já me sentia português, torcedor do Benfica, e muito mais próximo de Bárbara. Era figura costumeira no Estádio da Luz. Vi o time Supercampeão com 14 títulos em 18 anos, vi a república portuguesa ser tida como a salvação do país e vi o Fado crescer como identificação cultural dos lusos. Em uma das últimas aulas do ano, eu já não suportava mais Afonso Henriques, pedros, migueis, marias. Num arroubo lhe disse “Bárbara, tenho que confessar-te algo!” ela esbugalhou seus olhos verdes “Fala, Fran! Estás a me matar de medo”. Fechei os olhos e fui uma hemorragia de confissões, quando eu os abri, Bárbara era a maior mulher do mundo, não existia mais nada naquele apartamento, só ela. Sua boca era tão grande naquele momento que ela exercia uma gravidade que a minha não resistiu, nem podia.

O Fado da Cuíca - Pt3

Capítulo III

Tanto mar

Nessas turnês cresci, ganhei dinheiro, conheci muitos lugares. Mas o último lugar que visitei e me apaixonei foi Lisboa. Não passaríamos por lá, Portugal vivia numa crise da ditadura e as obras tinham sido censuradas. Fomos graças à Revolução dos Cravos em 25 de abril de 74. Fiquei maravilhado com a cidade e com a efervescência política depois do acontecido. Em 77, resolvi me estabelecer por lá, tinha juntado um bom dinheiro e não precisava me preocupar com trabalho por algum tempo. Vivia de bar em bar me envolvendo com um novo tipo de som, o Fado, este entrava na minha cabeça muito mais como poesia decassilábica sem ligar muito pro seu ritmo. Em um Café encontrei uma bela fadista portuguesa. Aquela Jovem de cabelos longos e negros, pele azeitadada de Algarves, olhos verdes e grandes carregados de gravidade, talvez pela alma da canção, não chamava muita atenção por ser um tipo comum vindo do sul da Península. Mas ela me lembrava uma moça que tinha visto em fotos sobre a Revolução dos Cravos que o Ruy Guerra vivia mostrando pra Chico Buarque. Resolvi perguntar ao balconista quem era a moça. Pouco sabia. Disse-me que o nome dela era Bárbara, era professora de História pelo dia e cantava Fado nas terças e quintas naquele café. Já era o suficiente para mim. Fui logo me apresentar a ela. Não sei de onde veio tanta coragem, talvez tenha vindo com a confiança que ganhei na turnê, ou de não se importar mais com a língua presa por já estar falando um outro português. Sei que Bárbara fez pouco caso de mim, não tinha muito o que me falar. Apenas agradeceu os elogios e respondeu minhas perguntas. Fiquei louco para aprender mais sobre o Fado e a poesia que se esconde atrás dele, até que um dia encontrei na parede de um edifício no Bairro da Mouraria um papel escrito “Reforço de História Portuguesa – Professora Bárbara Carvalho”.   Não precisava saber de História Portuguesa, mas eu tinha que ver aqueles olhos verdes outra vez.

O Fado da Cuíca - Pt 2

Capítulo II

É verde, é rosa!

Tinha dois grandes sonhos na minha vida, jogar pelo América e desfilar com a Mangueira. O primeiro foi desfeito por uma lesão no joelho em um dos testes. Tinha 16 anos e o América não acreditou na minha reabilitação. Chorei. Chorei até ter pena de mim mesmo. As palavras do treinador só pararam de doer quando eu recebi um convite de um tal de Agenor, amigo de meu pai, que me convidou pra tocar a  velha Cuíca na verde e rosa. Desatei a estudar música, o vermelho do Mecão já não tomava grande parte do meu coração, mas dava lugar ao verde e  rosa da Estação Primeira. Logo no meu primeiro carnaval em 61 fomos campeões com o enredo “Reminiscências do Rio antigo”, repetimos o feito em 67 e 68 quando eu mudei pra bateria da escola e também quando eu conheci a Cecília, a Porta-Bandeira. Era louco por ela, a ponto de brigar com o Moreirinha, o mestre-sala, sujeito que nunca me fez mal, por puro ciúme. Cecília era uma morena de pele macia, olhos negros e fundos, sorriso alvo e perfeito, mas o que mais espantava nela era seu jeito de andar. Seu desfile fazia o morro parar, como se todos esperassem por aquele momento. E tudo só voltava ao normal, quando sua graça se perdia no horizonte e ninguém mais a via. Sempre tive vergonha de falar com ela, talvez pela minha fala medonha, talvez pela minha timidez, talvez por ser só mais um baterista e ela ser A Porta-Bandeira. Passei a não ligar mais pra ela, vinha crescendo como baterista da escola e soube que o sobrinho do Jamelão tinha uma queda por ela, era “melhor não mexer com essa gente grande” sempre disse meu pai e eu consentia. Em 73 fomos campeões de novo, dessa vez a bateria foi destaque da Escola. Fui convidado pra ser percursionista de uma turnê com Chico Buarque com o objetivo de promover o CD e a peça “Calabar”.

O Fado da Cuíca

Capítulo I


Nasce Chico Cachaça


Meu nome, Francisco Santos, nascido em 1944 no Morro da Mangueira, onde fui criado. Vindo de onde eu vim só tinha um destino. Dar samba! Logo, logo meu pai me colocou nas rodas de Bamba, nelas eu comecei a ser conhecido como Chico Cachaça. Pura ironia dos meus parceiros. Parei de beber no primeiro porre, quando apanhei tremendamente de minha mãe com 17 anos- Só deixei de apanhar da velha no dia em que seus reflexos já eram mais lentos que meu corpo. O apelido vem muito mais da gozação que sempre se fazia quando eu mastigava o som do “x” e do “ch” e com essa alcunha eu era obrigado a falar duas vezes. Por causa desse defeito sempre fui muito tímido, nunca fui de falar muito, muito menos cantar. Fui relegado à cuíca, nunca reclamei, gostava dela, mas só gostava por causa das cuícas que eu ouvia em outros sambas e na minha escola de coração, a Estação Primeira de Mangueira.

O Insanoscópio

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