Bem, agora, vamos ao texto.
Tive vários professores marcantes durante minha vida. Um desses foi o de redação no terceiro ano. O cara tinha muito conteúdo, ensinava bem, tinha uma personalidade única e era muito estranho para um professor de uma tradicional escola católica. Tinha, ensinava e era. Ele morreu ano passado...
Lembro bem o dia em que ele contou para a turma um conto de Clarice Lispector entitulado "Felicidade clandestina". Depois do conto, uma aula minuciosamente arquitetada por um brilhante mestre. Ele era manipulador, um brilhante manipulador.
Clarice é uma das mais importantes e reconhecidas escritoras da língua portuguesa, e isso já diz alguma coisa. Tenho lido e me maravilhado por demais com a enigmática literatura dessa autora ultimamente. Estou chegando a conclusão que ela é definitiva, não dá pra ler só uma vez. Acho que sempre vai ser necessário pra mim voltar aos seus contos pra alcançar novas percepções nas entrelinhas. O que posso falar sobre Clarice? Leiam seus livros, leiam...
Pois bem, o conto é fascinante. Naquele momento foi contado com todo o entusiasmo maquiavélico do meu querido professor. Ele era um artista naquele momento, mas, naquele momento, seu talento não estava acima do de Clarice.
Eu já disse, ele era manipulador, e mesmo que a nossa turma debatesse euforicamente por setenta e três minutos, nos últimos dez da aula, ele sempre conseguia fazer com que todos concordassem com suas idéias. Brilhante. Brilhante e perigoso.
Nem todos percebiam isso naquela época, eu também não. Mas o fato é que fiquei extasiado com a aula e com o conto, principalmente com o conto. Conheci mais da autora depois, mas nunca achava o tal conto da menina devoradora de livros. Não conhecia ao menos o título.
Há uns dez dias comprei um ótimo livro chamado Clarice na cabeceira. Começava a ler cuidadosamente mais um conto quando, logo no primeiro parágrafo, me veio o reconhecimento, as várias recordações e a alegria de ter enfim achado-o. Li, então, mais cuidadosamente ainda.
Algum tempo depois, ainda com o livro aberto em minhas mãos na última página lida, me surpreendi com a maneira pela qual aquilo estava acontecendo. Eu não estava buscando significados metafísicos, não estava voltando aos parágrafos anteriores pra ver se o que eu pensava fazia sentido, não estava pensando na aula que tive nem fazendo comparações com a maneira quase teatral que aquele professor encontrara para transmitir o belo conto que até agora não entendi muito bem. Não, não era nada disso. Eu estava tão somente perplexo pelo choque entre o conto que de fato existia, mas que só estava em minha mente segundo a visão de outras pessoa com a realidade, com o que o conto realmente é sem a maquiagem de um ator.
Achei insano perceber como as experiências vividas são muitas vezes recheadas desses choques instantâneos. É uma loucura esse negócio de de repente estar frente a algo cuja existência já fora conhecida, mas nunca encarada. Mas estar frente a determinadas realidades não significa exatamente ter sensações imprevisíveis e pensamentos fervilhando acerca da realidade de longe conhecida com a realidade nua e crua. Isso pode apenas fazer não se pensar em mais nada, apenas deixar perplexo, sem reação. É a maneira mais impactante de tornar-se expectador de si mesmo.