O som do silêncio

A gênese do stress acontece quando o despertador toca. Daí em diante tudo é caos. Um familiar prepara o café na cozinha, cada tilintar de talher ou xícara soa como um martelo agredindo um prego. O telejornal matinal anuncia mais uma morte, mais um evento na cidade e finaliza com as notícias do esporte. Nada é captado pela mente, mas tudo é ouvido. Paz. Momento de entrar no banheiro. Espere... Eu disse paz? Não. O acender da luz, o clique do interruptor, o ranger do registro do chuveiro, o som da resistência que faz a água esquentar, a água caindo e finalmente o frasco do xampu cai no chão quando você tenta apanhá-lo no suporte. – Uma explosão – diz seu cérebro, mas não. Apenas foi o frasco do xampu caindo no chão. Daí vem o barulho da roupa sendo passada, os estalos ressoam no interior do ferro de passar roupas. Começa o noticiário nacional. Mais mortes, mais eventos, notícias internacionais e, finalmente, esportes. A porta é aberta. “Tchau, pai. Tchau, mãe”. Mais sons. O velho elevador desce lentamente. Um esboço de silêncio. Mas só um esboço. No abrir da porta as mesmas expressões estão agora diante de seus olhos. “Bom dia” é o máximo que é dito. O clímax do dia é atingido no ponto de ônibus trivialmente lotado. Pessoas falam e falam. Falam dos problemas, das conquistas, do time X, do time Y. Todos os dias. Carros, carros e mais carros. Um coral automobilístico. Tem tenores, barítonos, contraltos e sopranos. Entoam a canção do barulho. São bons no que fazem. Então vem o trabalho. Pessoas andando, barulho de sapatos femininos (ou não), telefone tocando, teclas sendo batidas, impressoras, chefe, o telefone toca novamente, música no celular, música no computador, fofoca, intriga, elevador, refeitório, mais talheres, mais marteladas, volta ao telefone, à música no celular, música no computador, fofoca, intriga, elevador, volta pra casa. O coral de carros está feroz. Trouxeram uma orquestra de metais com ele. Tem corneta, tem sax tenor, barítono e alto. Tem trombone, tem fagote, tem flauta e tem apito. Tudo misturado numa grande e épica ópera da vida cotidiana. De volta ao barulho doméstico. Televisão, novela, jornal, novela, latidos do cachorro de estimação, reclamações do pai, da mãe e da irmã ou irmão. Barulho de teclas, telefone, talheres e pratos reverberando na freqüência mais irritante. Escova de dente, água caindo, abre geladeira, fecha geladeira, sandália arrastando no chão, cama range e pronto. Liga o ventilador e pensa: “Será que nada é capaz de promover o silêncio? Ah, sim! O sono”. E aí você percebe que o relógio faz tic-tac. Cadê o silêncio? Quando souber, por favor, responda.

6 comentários:

Raylaine 6 de dezembro de 2010 às 21:42  

Estou aqui sem conseguir achar a expressão correta pra caracterizar seu texto, Kikão! Já tentei duas vezes comentar e não consegui... mas vou ver aqui se consigo passar a idéia.

O texto está muito perfeito!!! Ele conseguiu exatamente passar ao leitor a angústia do autor em cada colocação. Me lembrei de sinestesia quando o li, foi a sensação de ler um texto barulhento, ou seja, a sensação de um incômodo auditivo a partir de um estímulo visual (não de forma tão simples)...

Quando o li também lembrei daquelas cenas típicas de alguns filmes, onde o personagem está em algum ambiente e começa a prestar atenção nos sons, a princípio isoladamente e depois de forma conjunta, transformando um som ambiente em um barulho ensurdecedor... Tem uma cena dessa em Sherlock Holmes, quando Holmes vai ao restaurante conhecer a noiva de Watson... essas cenas geralmente me causam muita aflição... =/

Agora... existem lugares onde os sons não agridem tanto os nossos ouvidos... é como se os sons estivessem em harmonia... geralmente me sinto assim quando estou numa praia à noite em silêncio ou numa fazenda... é um barulho silencioso e reconfortante... =P

Jehiel Casaes 6 de dezembro de 2010 às 23:47  

Caramba, muito bão mesmo esse texto. As palavras de Ray são minhas também.
Assim, a vida urbana tende ao caos. Essa barulheira cotidiana toda consegue me deixar irritado. Mas nada pior do que chegar em casa e ter alguém assistindo tv em alto volume enquato passam as ULTRA-MEGA OFERTAS CASAS BAHIA.
Assim, em alguns momento, o que realmente é pertubador é estar no silêncio só consigo mesmo. Porque isso faz ficar em confronto direto com a própria consciência. Nesse momento, cenas se repetem interminavelmente; diálogos que nunca acontecerão se formam e se transformam; verdades; mentiras; o que foi dito; o que não foi dito; arrependimentos, tudo vai passando lentamente. Deve ser por isso que muitas pessoas buscam muito trabalho, intensa agitação, drogas, festas de camisa colorida... E o que isso mais afeta é o sono.

Vagner Amaral 7 de dezembro de 2010 às 01:11  

meu broder, seu texto me inquieta... Ray expressou bem quando comentou sobre a sinestesia q vc acaba passando pra gente... excelente... sinto falta de ouvir o silêncio...

samara 7 de dezembro de 2010 às 10:01  

Faço minhas todas as palavras acima. muito bom.

Unknown 7 de dezembro de 2010 às 14:21  

Kikão...

Te conheço através de sua escrita! E lendo esse texto só consigo te imaginar na extrema necessidade de férias...

Vivemos em uma loucura de cidade grande, precisamos de um tempo só nosso para relaxar e "ouvir o silêncio"!

Já disse que vc é show né!!! rsrsrsrsrs

Lidiane Ferreira 11 de dezembro de 2010 às 12:16  

Esse texto mostra o quanto uma rotina em uma cidade grande é praticamente igual (me identifiquei com ele, assim como creio que muitas pessoas se identificaram).

E também quase provoca uma certa falta de fôlego, já que só possui um único parágrafo... e que parágrafo!

Sinto falta do silêncio também... mas sempre procuro me desligar do som das ruas ouvindo música nos meus fones de ouvido ou ouvindo os meus pensamentos, quando eles não estão confusos e difusos.

Ou mesmo tentando captar cada som individualmente... em busca da melodia do dia-a-dia.

Excelente post, Kikão! =*

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