Narcisum Salvatis

Lembro-me quando tinha entre 6 e 7 anos e minha mãe havia chegado de viagem bem entusiasmada com uma peça da Broadway – O Fantasma da Ópera. Mais especificamente lembro-me da cena onde estávamos sentadas no chão da sala, em frente ao som, ouvindo o CD que ela trouxera do grande espetáculo. Ali ela relatara em detalhes a tragédia, o romance e o suspense envolvente em que era regida a peça. Enquanto as palavras saltavam de sua boca cheias de expressão, ao fundo as vozes inebriantes serviam de mecanismos para formação de algo dantesco em minha mente, eram imagens, que eu criara sem ver com os meus olhos, baseados na percepção da minha narradora, mas era os meus outros sentidos que se faziam capazes de formular cada detalhe visual.
E é com essas lembranças e tantas outras que entro em um paradoxo: a visão nos cega. Naqueles instantes eu conseguia organizar o meu próprio modo de vista, meus ouvidos captavam informações e a partir dali meu cérebro se tornara um mar no infinito da imaginação. A imagem formada pela retina é o famoso rótulo que as pessoas levantam em debates, é apenas a primeira imagem propriamente dita. Preferia caminhar com os olhos vendados, pois minha visão é preconceituosa, não sei se consigo olhar sem julgar, ainda que seja um “bom” julgamento, quem poderá afirmar que o que os olhos ali vêem é o que realmente é?!
Hoje entendo o que a frase, clichê, “o que os olhos não vêem o coração não sente” quer dizer: se não fossemos atraídos pelo rótulo talvez nós não nos frustrássemos tanto com os falsos produtos, obviamente é apenas uma das tantas vertentes que se pode interpretar, mas não deixa de ser um fato.
Eugene Bavcar, um fotógrafo cego, indaga: “Mas vocês não vêem corretamente, vocês são cegos. Pois hoje vivemos num mundo de cegos. As imagens são propostas pela televisão, imagens prontas”. Somos reféns da imagem, e o pior, reféns de imagens transpostas por alguém. É como se as imagens estivessem sempre procurando quem as compre. Às vezes canso de viver nesse mundo onde quem vê cara deduz o coração, onde as pessoas são vítimas da vaidade exacerbada e tendem a se moldar pra fazer parte de um núcleo de atenção desejável. Talvez se Narciso fosse cego ele não teria morrido afogado.

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